sábado, 24 de agosto de 2013

Ordo Templi Orientis

A Ordo Templi Orientis, cujo membro mais famoso foi Aleister Crowley, também teve iniciados ilustres no Brasil: Raul Seixas e Paulo Coelho. Confira nessa matéria um encontro com o homem que apresentou o ocultismo para o autor de O diário de um mago.




“Viva, viva, viva a Sociedade Alternativa”, repete o coro, enquanto a voz esganiçada de Raul Seixas se ergue ao fundo, em tom de exortação: “O número seiscentos e sessenta e seis chama-se Aleister Crowley.... Faze o que tu queres; há de ser tudo da lei... A lei de Thelema, a lei do forte, essa é a nossa lei e a alegria do mundo”. Muda a canção e, sobre uma base repetitiva, Raul declama, com voz fantasmagórica: “Todo homem tem direito de amar a quem quiser... Todo homem tem o direito de viver como quiser... Todo homem tem o direito de morrer quando quiser”.

O Brasil é o único país em que os ensinamentos libertários do ocultista inglês Aleister Crowley viraram refrãos de rock’n roll. Eles são encontrados nas obras musicais de Raul Santos Seixas a partir de 1973. Ao lado de seu parceiro na época, o escritor Paulo Coelho, ele havia tomado para si o papel de divulgador da filosofia de Crowley.

De 1898, quando se iniciou nos mistérios do espiritualismo, até sua morte, em 1947, aos 72 anos, Crowley foi um dos principais provocadores de transformações no cenário das filosofias ocultas. Infundiu o humanismo no ocultismo, mas sua necessidade/vontade de chocar a sociedade vitoriana fez com que acabasse sendo vilanizado como “adorador do diabo”, da mesma forma que seus seguidores o seriam.

As citações nas músicas de Raul Seixas e Paulo Coelho não eram a primeira aparição do polêmico inglês em contexto musical. Os Beatles colocaram Crowley na contracapa do disco Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), junto com outras importantes – e curiosas – figuras que os fab four admiravam – todas elas num jardim de cannabis sativa. O cantor Ozzy Osbourne, então ex-membro banda de heavy metal britânica Black Sabbath, chegou perto. Fez uma música – Mr. Crowley – em homenagem ao ocultista, mas suas letras eram alegorias de cunho satânico, para chocar, sem pretensões doutrinárias espirituais. O guitarrista Jimmy Page, outro ícone da música britânica com sua banda Led Zeppelin, também teve um envolvimento profundo com a obra de Crowley.
MOTTA Raul e Paulo conheceram a obra de Crowley por meio de Marcelo Ramos Motta. Nascido em 1931, no Rio, Motta começou a se interessar por ocultismo ainda na adolescência, estudando avidamente os textos da Ordem Rosacruz.

Aos 17 anos, juntou-se à Fraternitas Rosicruciana Antiqua (FRA), fundada em 1928 pelo médico alemão Arnold Krumm-Heller, que compartilhava as ideias avançadas de Crowley. Deixou-a 12 anos depois, quando o sucessor de Krumm-Heller no comando da FRA, Duval Ernani de Paula, decidiu romper com a filosofia do bruxo.

Motta, então, entrou em contato com o alemão Karl Germer, ex-secretário de Crowley que dele “herdou” a Ordo Templi Orientis (OTO) – após disputa interna ferrenha. Viajou aos EUA e teve lições diretas de Germer, de quem se tornou discípulo e amigo. O mestre morreu em 1962, ano em que Motta publicou seu primeiro livro.

Editado por ele mesmo, na Gráfica Lux, no Rio, Chamando os filhos do Sol pretendia, de acordo com o autor, “trazer notícia ao público” sobre a existência do sistema mágico desenvolvido por Aleister Crowley. Mas, logo em seguida. Motta detectou um erro que prejudicaria a interpretação do símbolo da Cabala judaica Árvore da Vida, também muito valorizado por Crowley. Recolheu quase todos os exemplares. Os compradores podiam ser contados nos dedos de uma mão: Euclydes Lacerda de Almeida estava entre eles.

EUCLYDES “Minha mulher me pediu para comprar um livro, cujo nome não me recordo. Nas estantes da livraria, vi o Chamando os filhos do Sol. Aquilo me interessou, comprei e li. Era diferente de tudo o que havia lido até então. Foi um choque”, afirmou Euclydes, em entrevista ao autor, em 2008, um ano antes de falecer.
Motta, que assinava apenas M, colocou um endereço para correspondência na obra. “Naquele tempo não tinha e-mail, né?”, brincou o discípulo. O contato entre os dois começou por cartas, em 1963. Numa de minhas visitas ao seu apartamento, para uma série de entrevistas gravadas, ele ainda as guardava em fichários com folhas plásticas. Trocavam ideias sobre a filosofia thelêmica e sobre a instalação de uma sucursal da OTO no Brasil.

Logo, as discussões passaram a ser em encontros pessoais. O tratamento no início era formal – “Senhor Euclydes” –, depois passou a ser pelo “nome mágico” – mote escolhido pelo iniciado para representar seus objetivos. Euclydes acreditava que Motta teria mais um ou dois dispostos a ajudá-lo na missão autoimposta de divulgar a Thelema no Brasil.

“Devia ter discípulos nos Estados Unidos, que eu não conhecia. Na A.’.A.’. (Astrum Argentum, grupo criado por Crowley) você só conhece quem o inicia e quem você inicia. Na OTO, é diferente. É uma ordem maçônica, trabalha em conjunto”, explicou.

O golpe militar de 1964 fez os dois iniciados se afastarem um pouco. Ainda mais porque em julho do mesmo ano, contou Euclydes, Motta esquivou-se de seu pedido formal para ingresso na OTO. Alegou que sua autorização para criar uma representação brasileira da ordem havia sido enviada por Germer, mas “subtraída” não se sabe por quem.

Os dois tentavam garimpar seguidores. Distribuíam cartões pelas ruas, com os versos de uma das obras de referência de Crowley, o Liber OZ, libelo sobre o que julgava serem os direitos do ser humano: boa parte deles, completamente antenada com o senso comum. Só conseguiram causar a revolta de alguns com o trecho final, que afirma que o homem “tem o direito de matar aqueles que tentarem negar seus direitos”. Euclydes negou que seja uma sanção para assassinatos, como sempre interpretaram os críticos da ordem: “Esse ‘matar’ aí não é no sentido literal. Tem certas tendências negativas, entre aspas, que têm que ser mortas. Não é matar fisicamente. E Crowley dizia que ninguém devia acreditar nele, cada um devia acreditar em si e seguir seu próprio caminho. Seja qual for, católico romano, umbandista, kardecista... não importa o caminho, contanto que a pessoa seja honesta e cumpra à risca aquilo que escolheu”.
Em 1968, Euclydes foi transferido na Petrobras, onde trabalhava, para o interior do estado do Rio de Janeiro. Durante alguns anos, o contato entre os dois foi menor, até que, de volta à capital, ele recebeu de Motta a incumbência de orientar um novo discípulo.

PAULO E RAUL Então jornalista, Paulo Coelho conheceu Marcelo Motta em algum momento de 1972, quando escrevia para as obscuras revistas A Pomba e 2001. Ele foi escalado para entrevistar Motta por um editor atraído pelo epíteto que o ocultista ostentava: “O herdeiro da Besta no Brasil”.

Em um encontro posterior, conta o jornalista Fernando Morais em O mago, Motta teria se revelado como líder mundial da Astrum Argentum, ordem mística de caráter não coletivo criada por Crowley, que a comandava paralelamente à OTO. O pacato professor de inglês teria mostrado a Coelho a figura de Crowley no disco dos Beatles e indicado que ele se informasse a respeito do mestre inglês. Foi o que o futuro best seller fez.

A reportagem pode ter sido uma das diversas que chamaram a atenção de Raul Seixas para o nome de Augusto Figureiredo – um dos pseudônimos de Paulo Coelho. Na mesma época em que ele começava a tomar contato com o que considerava “a barra-pesada do ocultismo”, o cantor e compositor baiano foi ao prédio da editora para tentar conhecer o autor das histórias impressionantes que andava lendo.

Marcelo Motta, no entanto, tinha outros planos. Considerava que já tinha discípulos suficientes e decidiu delegar a instrução de Paulo Coelho a Euclydes. Então conhecido como Frater Zaratustra, Euclydes disse que nunca soube se Motta, Frater Parzival, chegara a instruir Raul Seixas.
Paulo Coelho escreveu a primeira carta a Euclydes em agosto do ano seguinte, segundo a jornalista Herica Marmo, no livro A canção do mago. Aos 25 anos, ele já tinha lido obras de ocultistas importantes, como a russa Helena Petrovna Blavatsky, uma das fundadoras do movimento teosófico, o alquimista francês Alphonse Louis Constant (que assinava com seu nome hebraico, Eliphas Levi) e o místico russo Gurdjieff – considerado por muitos do meio como a perfeita antítese de Crowley.

“Minha formação no assunto foi a mais desordenada possível, lendo tudo o que me caía nas mãos, mas sem a paz suficiente para poder traçar analogias e paralelos entre os livros que li”, admitiria Paulo. “O fascínio preponderante foi com alquimia, mas uma caótica situação existencial – criada por mim mesmo – me impediu de prosseguir numa orientação mais produtiva de trabalho”, escreveu o aspirante a mago.

Após nove meses de instrução (não por acaso, o tempo de uma gestação), Paulo prestou o juramento de probacionista na Astrum Argentum em 19 de maio de 1974. Seis dias depois, um sábado, ele teve, segundo Fernando Morais, a “visita do demônio” pela qual havia muito ansiava. O relato do biógrafo é que ele foi tomado por um intenso mal-estar, tonturas, e viu o seu apartamento ser invadido por uma fumaça escura. Entre as tentativas de se livrar das energias negativas, foi a uma igreja e renegou Thelema como culto do diabo.

Raul havia sido chamado para comparecer ao Dops a fim de “prestar esclarecimentos”. Paulo decidiu acompanhar o parceiro. Após meia hora, Raul saiu tentando alertar o amigo. Os militares o tinham convocado para saber de sua associação com ele e sua então namorada, Adalgisa Rios, militante do Partido Comunista do Brasil (PC do B). Atribuíam a Paulo participação no Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Os dois foram presos e libertados apenas após os interrogatórios brutais dos militares.

Semanas depois, ainda de acordo com Fernando Morais, Paulo entrou em contato com seu instrutor, para anunciar seu desligamento. O jornalista relata que Marcelo Motta apareceu em lugar de Euclydes, e acusou o probacionista desgarrado de ter falhado. Euclydes negou que tivesse recebido qualquer contato de Paulo Coelho. Mas, sua explicação foi semelhante à de Motta: “Se você for fazer uma prova, como um vestibular... se você não estudar, você dança. Acontece a mesma coisa na iniciação. Se você seguir os ensinamentos reais iniciáticos com assiduidade, com respeito, com amor, vai chegar a certos pontos e vão acontecer certas coisas. O que aconteceu com o Paulo Coelho foi que teve uma prova e não aguentou. Ele teve um encontro com a sua própria sombra. Nós temos uma parte positiva e uma negativa também. Senão não haveria luz. Agora, se você tem medo de si mesmo, o problema é outro. Mas não é por causa disso que eu vou correr para o Edir Macedo, pedir perdão, porque eu pequei...”.

Em nossa entrevista, Euclydes se exaltou ao comentar que o conceito de “lenda pessoal” remetia à busca pela “verdadeira vontade” de Crowley. “O primeiro livro dele, O diário de um mago, foi todo baseado nisso! Ele usa até o termo ‘diário’, que é usado na A.’. A.’., Diário Mágico. Por quê? Ele não queria se desprender de tudo isso? Por que foi receber uma espada no alto de um morro? São coisas que o leigo não percebe. A espada do mago tem dois gumes, é a dualidade”, afirmou.

Segundo Euclydes, após esses fatos, Paulo Coelho não entrou mais em contato. Mas eles se encontrariam por acaso, em uma oficina mecânica. “Nós tomamos um cafezinho na esquina e batemos papo. Nossa conversa foi assim, profana”, contou.

Questionado se havia a adoração à figura de Satã dentro das práticas thelêmicas – mistura que agrega elementos da ioga hindu, da cabala judaica, da astrologia e do tarô, entre outras... –, ele repeliu a ideia veementemente: “Negativo! Nunca vi, nunca vi! Eu fui discípulo do Marcelo durante 14 anos, vivo até hoje como thelemista, tenho minhas práticas e nunca adorei Satã. Embora haja por aí várias seitas satânicas, claro”.

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