Vinte e dois anos depois, tornei a ver Margarito Duarte. Apareceu de
repente numa das ruazinhas secretas do Trastevere, e tive trabalho em
reconhecê–lo à primeira vista
por seu castelhano difícil e seu jeito ameno de romano antigo. Tinha o
cabelo branco e escasso, e não restavam nele rastros da conduta lúgubre e
das roupas funerárias de advogado andino com que havia vindo a Roma
pela primeira vez, mas no curso da conversa fui resgatando–o pouco a
pouco das perfídias dos anos e tornei a vê–lo como era: sigiloso,
imprevisível, e de uma tenacidade de quebrador de pedra.
Antes da segunda xícara de café num dos nossos bares de outros tempos, me atrevi a fazer–lhe a pergunta que me carcomia por dentro.
– O que aconteceu com a santa?
– Lá está a santa – respondeu. – Esperando.
Só o tenor Rafael Ribero Silva e eu podíamos entender a tremenda carga humana
de sua resposta. Conhecíamos tanto seu drama que durante anos pensei
que Margarito Duarte era o personagem em busca de autor que nós,
romancistas, esperamos durante uma vida inteira, e se nunca deixei que
me encontrasse foi porque o final de sua história me parecia
inimaginável.
O cônsul chamou então por telefone o tenor Rafael Ribero Silva, seu
compatriota, para que conseguisse para ele um quarto na pensão onde nós
dois morávamos. Foi assim que o conheci.
Centenas de curiosos atraídos pelo clamor do milagre lotaram a aldeia.
Não havia dúvida. A incorruptibilidade do corpo era um sintoma
inequívoco da santidade, e até o bispo da diocese concordou que
semelhante prodígio deveria ser submetido ao veredicto do Vaticano.
Assim, foi feita uma coleta pública para que Margarito Duarte viajasse a
Roma, para batalhar por uma causa que já não era apenas dele ou do
âmbito estreito da aldeia, mas um assunto nacional.
Enquanto nos contava sua história na pensão do agradável bairro de
Panou, Margarito Duarte tirou o cadeado e abriu a tampa do baú
primoroso. Foi assim que o tenor Ribero Silva e eu participamos do
milagre. Não parecia uma múmia murcha como as que a gente vê em tantos
museus do mundo, mas uma menina vestida de noiva que continuava dormindo
ao cabo de uma longa estada debaixo da terra. A pele era polida e
morna, e os olhos abertos eram diáfanos, e causavam a impressão
insuportável de que nos viam da morte. A tule e os jasmins falsos da
coroa não haviam resistido ao rigor do tempo com tão boa saúde como a
pele, mas as rosas que haviam sido postas em suas mãos permaneciam
vivas.
O peso do estojo de pinho, na verdade, continuou sendo o mesmo quando tiramos o corpo.
Margarito Duarte começou suas gestões no dia seguinte ao da chegada. No
começo com uma ajuda diplomática mais compassiva que eficaz, e depois
com todas as artimanhas que lhe ocorreram para superar os incontáveis
obstáculos do Vaticano. Foi sempre muito reservado sobre suas
diligências, mas sabia–se que eram numerosas e inúteis. Fazia contatos
com todas as congregações religiosas e fundações humanitárias que
encontrava pelo caminho, onde o escutavam com atenção mas sem assombro, e
lhe prometiam gestões imediatas que nunca davam em nada. A verdade é
que a época não era a mais propícia. Tudo que tivesse a ver com a Santa
Sé havia sido adiado até que o papa superasse a crise de soluços,
resistente não apenas aos mais refinados recursos da medicina acadêmica,
mas a todo tipo de remédios mágicos que lhe mandavam do mundo inteiro.
Finalmente, no mês de julho, Pio XII recuperou–se e foi para as suas
férias de verão em Castelgandolfo.
Margarito levou a santa à primeira audiência semanal com a esperança de
mostrá–la. O papa apareceu no pátio interior, num balcão tão baixo que
Margarito pôde ver suas unhas bem polidas e chegou a sentir seu hálito
de lavanda. Mas não circulou entre os turistas que chegavam do mundo
inteiro para vê–lo, como Margarito esperava, e pronunciou o mesmo
discurso em seis idiomas e terminou com a bênção geral.
Após tantos adiamentos, Margarito decidiu enfrentar as coisas em pessoa,
e levou à Secretaria de Estado uma carta manuscrita de quase sessenta
folhas, para a qual não obteve resposta. Ele havia previsto isso, pois o
funcionário que recebeu a carta com os formalismos de praxe limitou–se a
dar uma olhada oficial na menina morta, e os empregados que passavam
por perto a olhavam sem nenhum interesse.
Um deles contou–lhe que no ano anterior haviam recebido mais de
oitocentas cartas que solicitavam a santificação de cadáveres intactos
em vários lugares do mundo. Margarito pediu enfim que se comprovasse a
falta de gravidade do corpo. O funcionário a comprovou, mas negou–se a
admitir.
– Deve ser um caso de sugestão coletiva disse. Em suas escassas horas
livres e em seus áridos domingos de verão, Margarito permanecia em seu
quarto, obstinado na leitura de qualquer livro que pudesse ter interesse
para a sua causa. No fim de cada mês, por iniciativa própria, escrevia
num caderno escolar uma relação minuciosa de seus gastos com sua
caligrafia preciosista de amanuense–mor, para prestar contas rígidas e
oportunas aos contribuintes de sua aldeia. Antes de terminar o ano
conhecia os dédalos de Roma como se tivesse nascido neles, falava um
italiano fácil e de tão poucas palavras quanto seu castelhano andino, e
sabia tanto ou mais que qualquer um sobre processos de canonização. Mas
passou muito mais tempo antes que mudasse seu traje fúnebre, e o colete e
o chapéu de magistrado que na Roma da época eram próprios de algumas
sociedades secretas de fins inconfessáveis. Saía logo cedo com o estojo
da santa, e às vezes regressava tarde da noite, exausto e triste, mas
sempre com um rescaldo de luz que infundia nele novos ânimos para o dia
seguinte.
– Os santos vivem em seu próprio tempo dizia.
Eu estava em Roma pela primeira vez, estudando no Centro Experimental de
Cinema, e vivi seu calvário com uma intensidade inesquecível. A pensão
onde morávamos era na realidade um apartamento moderno a poucos passos
da Villa Borghese, cuja dona ocupava dois quartos e alugava quatro a
estudantes estrangeiros. Nós a chamávamos de Maria Bela, e era bonita e
temperamental na plenitude de seu outono, e sempre fiel à norma sagrada
de que cada um é rei absoluto dentro de seu quarto. Na verdade, quem
levava o peso da vida cotidiana era sua irmã mais velha, a tia
Antonieta, um anjo sem asas que trabalhava horas a fio durante o dia, e
andava por todos os lados com seu balde e sua vassoura de enxergão
lustrando além do possível os mármores do piso. Foi ela quem nos ensinou
a comer os passarinhos cantores que Bartolino, seu esposo, caçava por
um mau hábito que lhe restou da guerra, e quem terminaria levando
Margarito a morar em sua casa quando os recursos não deram mais para os
preços de Maria Bela. Nada menos adequado para o modo de ser de
Margarito que aquela casa sem lei. Cada hora nos reservava alguma
novidade, até na madrugada, quando nos despertava o rugido pavoroso do
leão no zoológico da Villa Borghese. O tenor Ribero Silva havia
conquistado o privilégio de que os romanos não se ressentissem de seus
ensaios madrugadores.
Levantava–se às seis, tomava um banho medicinal de água gelada e
ajeitava a barba e as sobrancelhas de Mefistófeles, e só quando já
estava pronto com o roupão escocês, o cachecol de seda chinesa e sua
água–de–colônia pessoal, entregava–se de corpo e alma aos seus
exercícios de canto. Abria de par em par as janelas do quarto, ainda com
as estrelas do inverno, e começava a aquecer a voz com fraseados
progressivos de grandes árias de amor, até que se soltava e cantava a
toda. A expectativa diária era quando dava o dó–de–peito e o leão da
Villa Borghese respondia com um rugido de tremor de terra.
– Você é São Marcos reencarnado, figlio mio – exclamava tia Antonieta, assombrada de verdade.
– Só ele podia falar com os leões.
Certa manhã, não foi o leão quem replicou. O tenor iniciou o dueto de amor do Otello: Già nella notte densa s'estingue ogni clamor.
De repente, do fundo do pátio, nos chegou a resposta numa bela voz de
soprano. O tenor prosseguiu, e as duas vozes cantaram a parte completa,
para o prazer da vizinhança que abriu as janelas para santificar suas
casas com a torrente daquele amor irresistível.
O tenor quase desmaiou quando soube que sua Desdêmona invisível era nada menos que a grande Maria Caniglia.
Tenho a impressão de que foi aquele episódio que deu um motivo válido a
Argarito Duarte para integrar–se na vida da casa. A partir de então
sentou–se com todos à mesa comum e não na cozinha, como no princípio,
onde a tia Antonieta o alegrava quase que todos os dias com seu ensopado
magistral de passarinhos cantores. Maria Bela lia para nós, na
sobremesa, os jornais do dia, para acostumar–nos à fonética italiana, e
completava as notícias com uma arbitrariedade e uma graça que alegravam
nossas vidas. Num daqueles dias nos contou, a propósito da santa, que na
cidade de Palermo havia um enorme museu com os cadáveres incorruptos de
homens, mulheres e crianças, e inclusive de vários bispos,
desenterrados de um mesmo cemitério dos padres capuchinhos.
A notícia inquietou tanto Margarito que não teve um só instante de paz
até que fomos a Palermo. Mas bastou–lhe dar uma olhada rápida pelas
abrumadoras galerias de múmias sem glória para formar um julgamento de
consolo.
– Não são o mesmo caso – disse ele. – A gente nota em seguida que estes
estão mortos.Depois do almoço, Roma sucumbia no torpor de agosto. O sol
de meio–dia ficava imóvel no centro do céu, e no silêncio das duas da
tarde só se ouvia o rumor da água, que é a voz natural de Roma. Mas lá
pelas sete da noite as janelas se abriam de repente para convocar o ar
fresco que começava a se mover, e uma multidão jubilosa atirava–se nas
ruas sem nenhum propósito além de viver, no meio dos petardos das
motocicletas, dos gritos dos vendedores de melancia e das canções de
amor entre as flores dos terraços.
O tenor e eu não fazíamos a sesta. Íamos em sua vespa, ele conduzindo e
eu na garupa, e levávamos sorvetes e chocolates para as putinhas de
verão que borboleteavam debaixo dos louros centenários da Villa
Borghese, em busca de turistas desvelados em pleno sol. Eram belas,
pobres e carinhosas, como a maioria das italianas daquele tempo,
vestidas de organdi azul, de popelina rosada, de linho verde, e se
protegiam do sol com as sombrinhas baleadas pelas chuvas da guerra
recente.
Era um prazer humano estar com elas, porque saltavam por cima das leis
do ofício e se davam o luxo de perder um bom cliente para ir conosco
tomar um café com muita conversa no bar da esquina, ou passear nas
charretes de aluguel pelas trilhas do parque, ou a doer conosco por
causa dos reis destronados e suas amantes trágicas que cavalgavam ao
entardecer no galoppatoio. Mais de uma vez servíamos de intérpretes
entre elas e algum gringo descarrilado.
Não foi por causa delas que levamos Margarito Duarte à Villa Borghese,
mas para que conhecesse o leão. Vivia em liberdade numa ilhota desértica
circundada por um fosso profundo, e assim que nos viu na outra margem
começou a rugir com um desassossego que surpreendeu o guarda. Os
visitantes do parque foram ver, surpresos. O tenor tentou se identificar
com seu dó–de–peito matinal, mas o leão não prestou atenção. Parecia
rugir a todos nós sem diferença, mas o vigilante percebeu no ato que ele
rugia só para Margarito. E era: para onde ele se movia, movia–se o
leão, e no momento em que se escondia, o leão parava de rugir. O
vigilante, que era doutor em letras clássicas pela universidade de
Siena, pensou que Margarito devia ter estado naqueles dias com outros
leões que o contaminaram com seu cheiro. Além dessa explicação, que não
valia, não encontrou outra.
– Seja como for – afirmou –, não são rugidos de guerra, são de compaixão.
No entanto, o que impressionou o tenor Ribero Silva não foi aquele
episódio sobrenatural, mas a comoção de Margarito quando pararam para
conversar com as moças do parque. Comentou isso na mesa, e uns por
malícia, outros por compreensão, concordamos que seria uma boa obra
ajudar Margarito a resolver sua solidão. Comovida pela debilidade de
nossos corações, Maria Bela apertou a peitaria de mãe bíblica com suas
mãos empedradas de anéis de bijuteria.
– Eu faria isso por caridade – disse –, se não fosse pelo fato de jamais ter conseguido com homens que usam colete.
Assim, o tenor passou pela Villa Borghese às duas da tarde e levou nas
ancas de sua vespa a borboletinha que lhe pareceu a mais propícia para
dar uma hora de boa companhia a Margarito Duarte. Fez com que ela se
despisse em seu próprio quarto, banhou–a com sabonete de cheiro,
perfumou–a com sua água–de–colônia pessoal, e polvilhou–a de corpo
inteiro com seu talco alcanforado de pós–barba. No fim, pagou a ela o
tempo que tinha passado e mais uma hora, e indicou–lhe, letra por letra,
o que deveria fazer.
A bela despida atravessou na ponta dos pés a casa em penumbra, como um
sonho de sesta, e deu duas batidinhas ternas na porta do fundo.
Margarito Duarte, descalço e sem camisa, abriu a porta.
– Buona sera giovanotto – disse ela, com voz e modos de colegial. – Mi manda il tenore.
Surpresa, a moça disse–lhe que andasse depressa, pois só dispunham de
uma hora. Ele fez que não entendeu. A moça disse depois que de qualquer
maneira teria ficado o tempo que ele quisesse, sem cobrar nenhum
centavo, porque não podia haver no mundo homem mais bem comportado. Sem
saber o que fazer enquanto isso, examinou o quarto com os olhos e
descobriu o estojo de madeira junto da lareira. Perguntou se era um
saxofone. Margarito não respondeu, apenas entreabriu a persiana para que
entrasse um pouco de luz, levou o estojo até a cama e levantou a tampa.
A moça tentou dizer alguma coisa, mas ficou com a mandíbula deslocada.
Ou como conforme nos disse depois: Mi si gelô ii culo. Escapou
apavorada, mas enganou–se de direção no corredor, e encontrou–se com a
tia Antonieta, que ia colocar uma lâmpada nova no meu quarto. Foi
tamanho o susto das duas que a moça não se atreveu a sair do quarto do
tenor até alta noite.
Tia Antonieta nunca soube o que aconteceu. Entrou no meu quarto tão
assustada que não conseguia enroscar a lâmpada, por causa do tremor nas
mãos. Perguntei a ela o que estava acontecendo. “É que nesta casa tem
assombração”, respondeu. “E agora, em pleno dia”, contou com uma grande
convicção que, durante a guerra, um oficial alemão degolou sua amante no
quarto que o tenor ocupava. Muitas vezes, enquanto andava em suas
tarefas, a tia Antonieta havia visto a aparição da bela assassinada
percorrendo seus passos pelos corredores.
– Acabo de vê–la pelada caminhando pelo corredor – disse ela. – Era idêntica.
A cidade recobrou sua rotina no outono. Os terraços floridos do verão
fecharam–se com os primeiros ventos, e o tenor e eu tornamos à velha
trattoria do Trastevere, onde costumávamos jantar com os alunos de canto
do conde Cano Calcagni, e alguns colegas meus da escola de cinema.
Entre estes últimos, o mais assíduo era Lakis, um grego inteligente e
simpático, cujo único tropeço eram seus discursos adormecedores sobre a
injustiça social. Por sorte, os tenores e as sopranos conseguiam quase
sempre derrotá–lo com trechos de ópera cantados aos berros, que ainda
assim não incomodavam ninguém, mesmo depois da meia–noite. Ao contrário,
alguns dos notívagos somavam–se ao coro, e na vizinhança janelas eram
abertas para aplaudir.
Uma noite, enquanto cantávamos, Margarito entrou na ponta dos pés para
não nos interromper. Carregava o estojo de pinho que não havia tido
tempo de deixar na pensão depois de mostrar a santa ao pároco de San
Juan de Letrán, cuja influência perante a Sagrada Congregação do Ritual
era de domínio público. Cheguei a ver de soslaio que deixou–o debaixo de
uma mesa afastada, e sentou–se enquanto terminávamos de cantar. Como
ocorria sempre por volta da meia–noite, reunimos várias mesas quando a
trattoria começou a esvaziar, e ficamos juntos, os que cantavam, os que
falávamos de cinema, e os amigos de todos. E entre eles, Margarito
Duarte, que já era conhecido ali como o colombiano silencioso e triste e
do qual ninguém sabia nada. Lakis, intrigado, perguntou a ele se tocava
violoncelo. Eu me encolhi com o que me pareceu uma indiscrição difícil
de ser contornada.
O tenor, tão incômodo quanto eu, não conseguiu remediar a situação.
Margarito foi o único que encarou a pergunta com toda naturalidade.
– Não é um violoncelo – disse. – É uma santa.
Pôs a caixa sobre a mesa, abriu o cadeado e levantou a tampa. Uma rajada
de estupor estremeceu o restaurante. Os outros clientes, os garçons, e
finalmente o pessoal da cozinha, com seus aventais ensanguentados,
congregaram–se atônitos para contemplar o prodígio. Alguns se
persignaram Uma das cozinheiras ajoelhou–se com as mãos unidas, presa de
um tremor de febre, e rezou em silêncio. No entanto, passada a comoção
inicial, nos enrolamos numa discussão aos gritos sobre a insuficiência
da santidade em nossos tempos. Lakis, é claro, foi o mais radical. A
única coisa que ficou clara foi sua idéia de fazer um filme crítico com o
tema da santa.
– Tenho certeza – disse – que o velho Cesare não deixaria esse tema escapar.
Referia–se a Cesare Zavattini, nosso mestre de argumento e roteiro, um
dos grandes da história do cinema e o único que mantinha conosco uma
relação pessoal à margem da escola. Tentava ensinar–nos não apenas o
ofício, mas uma maneira diferente de ver a vida. Era uma máquina de
pensar argumentos. Saltavam aos borbotões, quase contra a sua vontade. E
com tanta pressa que sempre fazia falta a ajuda de alguém para
pensá–los em voz alta e agarrá–los em pleno vôo. Só que, ao terminá–los,
seu ânimo despencava. "É uma pena que tenha de ser filmado", dizia.
Pois achava que na tela perderia muito de sua magia original. Conservava
as idéias em fichas organizadas por temas e presas com alfinetes nas
paredes, e tinha tantas que ocupavam um quarto de sua casa.
No sábado seguinte, levamos Margarito Duarte para vê–lo. Era tão guloso
de vida que o encontramos na porta de sua casa da rua Angela Merici,
ardendo de ansiedade pela idéia que havíamos anunciado por telefone. Nem
nos cumprimentou com a amabilidade habitual, mas levou Margarito até
uma mesa preparada, ele mesmo abriu o estojo. Então aconteceu o que
menos imaginávamos.
Em vez de enlouquecer, como era previsível, sofreu uma espécie de paralisia mental.
– Ammazza! – murmurou espantado.
Olhou a santa em silêncio por dois ou três minutos, fechou, ele mesmo, a
caixa, e sem dizer nada levou Margarito até a porta, como um menino que
desse os seus primeiros passos. Despediu–se dele com uns tapinhas nas
costas. "Obrigado, filho, muito obrigado", disse a ele. "E que Deus te
acompanhe em sua luta". Quando fechou a porta virou–se para nós, e deu
seu veredicto.
– Não serve para cinema – disse. – Ninguém acreditaria.
Esta lição surpreendente acompanhou–nos no bonde de regresso. Se ele
dizia, não havia o que discutir: a história não servia. No entanto,
Maria Bela recebeu–nos com o recado urgente de que Zavattini nos
esperava naquela mesma noite, mas sem Margarito. Nós o encontramos em um
de seus momentos de esplendor. Lakis havia levado dois ou três colegas,
mas ele nem pareceu vê–los quando abriu a porta.
– Já sei – gritou. – O filme será um estouro se Margarito fizer o milagre de ressuscitar a menina.
– No filme ou na vida? – perguntei.
Ele reprimiu a contrariedade. "Não seja bobo", disse a ele. "E que Deus
te acompanhe, disse. Mas em seguida vimos em seus olhos o brilho de uma
idéia irresistível. "A não ser que seja capaz de ressuscitá–la na vida
real", disse a ele. "E que Deus te acompanhe, disse, e refletiu a sério:
– Devia tentar.
– Certa noite – disse –, quando já morreram uns vinte papas que não o
receberam, Margarito entra em sua casa, cansado e velho, abre a caixa,
acaricia a cara da mortinha, e lhe diz com toda a ternura do mundo: "Por
amor ao teu pai, filhinha: levanta–te e anda"., disse a ele. "E que
Deus te acompanhe". Olhou para nós, e arrematou com um gesto triunfal: –
E a menina se levanta! Esperava alguma coisa de nós. Mas estávamos tão
perplexos que não sabíamos o que dizer. A não ser Lakis, o grego, que
levantou o dedo, como na escola, para pedir a palavra.
– Meu problema é que não acredito nisso disse, e diante da nossa
surpresa, dirigiu–se diretamente a Zavattini: – Perdão, mestre, mas não
acredito.
Então foi Zavattini quem ficou atônito.
– E não acredita por quê?
– Sei lá – disse Lakis, angustiado. – É que não dá.
– Ammazza! – gritou então o mestre, com um estrondo que deve ter sido
ouvido no bairro inteiro. – É isso o que mais me enche nos stalinistas: é
que não acreditam na realidade. Nos quinze anos seguintes, segundo ele
mesmo me contou, Margarito levou a santa a Castelgandolfo para ver se
aparecia a ocasião de mostrá–la. Numa audiência de uns duzentos
peregrinos da América Latina chegou a contar sua história, entre
empurrões e cotoveladas, ao benévolo João XXIII. Mas não pôde
mostrar–lhe a menina porque teve que deixá–la na entrada, junto com as
bolsas dos outros peregrinos, para prevenir um atentado. O papa
escutou–o com tanta atenção como foi possível no meio da multidão, e deu
em sua face uma palmadinha de incentivo.
– Bravo, figlio mio – disse. – Deus premiará sua perseverança.
No entanto, quando de verdade sentiu–se na beira de realizar seu sonho,
foi durante o reinado fugaz do sorridente Albino Luciani. Um parente do
papa, impressionado pela história de Margarito, prometeu ajudar. Ninguém
deu a menor bola. Mas dois dias depois, enquanto almoçavam, alguém
telefonou para a pensão com um recado rápido e simples para Margarito:
não devia sair de Roma, pois antes da quinta–feira seria chamado ao
Vaticano para uma audiência privada. Nunca se soube se foi um trote.
Margarito achava que não, e manteve–se alerta. Não saiu de casa. Se
precisava ir ao banheiro, anunciava em voz alta: "Vou ao banheiro".,
Maria Bela, sempre graciosa nos primeiros alvores da velhice, soltava
sua gargalhada de mulher livre.
– A gente já sabe, Margarito – gritava –' se por acaso o papa telefonar para você.
Na semana seguinte, dois dias antes do telefonema anunciado, Margarito
desmoronou diante da manchete do jornal que deslizaram por baixo da
porta: Morto il Papa. Por um instante, foi mantido pela ilusão de que
era um jornal atrasado que haviam levado por engano, pois não era fácil
acreditar que morresse um papa por mês. Mas foi assim: o sorridente
Albino Luciani, eleito trinta e três dias antes, havia amanhecido morto
na cama.
Voltei a Roma vinte e dois anos depois de conhecer Margarito Duarte, e
talvez não tivesse pensado nele se não o encontrasse por acaso. Eu
estava demasiado oprimido pelos estragos do tempo para pensar em alguém.
Caía sem cessar uma chuvinha boba, feito caldo morno, a luz de diamante
de outros tempos tinha se tornado turva, e os lugares que haviam sido
meus e sustentavam minhas nostalgias eram outros e alheios. A casa onde
ficava a pensão continuava a mesma, mas ninguém sabia nada de Maria
Bela. Ninguém respondia em seis números de telefone que o tenor Ribero
Silva havia me mandado através dos anos. Num almoço com o novo pessoal
do cinema evoquei a memória de meu mestre, e um silêncio súbito
sobrevoou a mesa por um instante, até que alguém atreveu–se a dizer:
– Zavattini? Mal sentito.
Assim era: ninguém havia ouvido falar dele. As árvores da Villa Borghese
estavam esgrenhadas debaixo da chuva, o galoppatoio das princesas
tristes havia sido devorado por um matagal sem flores, e as belas de
antigamente haviam sido substituídas por atletas andróginos travestidos
com mau gosto. O único sobrevivente da fauna extinta era o velho leão,
sarnoso e gripado, em sua ilha de águas murchas. Ninguém cantava nem
morria de amor nas trattorias plastificadas na praça Espanha.
Pois a Roma de nossas nostalgias era já outra Roma antiga dentro da
antiga Roma dos césares. De repente, uma voz que podia vir do além me
parou em seco numa ruela do Trastevere:
– Oi, poeta.
Era ele, velho e cansado. Cinco papas tinham morrido, a Roma eterna
mostrava os primeiros sintomas de decrepitude, e ele continuava
esperando. "Esperei tanto que não pode estar faltando muito", disse ao
se despedir, depois de quase quatro horas de lembranças. "Pode ser coisa
de meses". Foi–se embora arrastando os pés pelo meio da rua, com suas
botas de guerra e seu gorro desbotado de romano velho, sem se preocupar
com os charcos de chuva onde a lua começava a apodrecer.
Então eu não tive mais nenhuma dúvida, se é que alguma vez tinha tido,
de que o santo era ele. Sem perceber, através do corpo incorrupto de sua
filha, levava vinte e dois anos lutando em vida pela causa legítima de
sua própria canonização.
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