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terça-feira, 8 de outubro de 2013



O que leva alguém a negociar com o diabo? E mais importante qual o valor de uma alma e o que poderia ser recebido em troca dela?

Na literatura, Fausto vende sua alma em troca da vida eterna, mas aprende da maneira mais difícil que a eternidade pode ser um pesadelo, ele vive para lamentar a barganha. O músico norte-americano Robert Johnson supostamente vendeu sua alma para se tornar o maior de todos os guitarristas de blues, mas foi amaldiçoado para sempre.

Para um monge da Bohêmia que redigiu as linhas do lendário Codex Gigas (pronuncia-se GUI-gas), obra também conhecida como "Bíblia do Diabo", a barganha envolveu trocar sua alma pela oportunidade de escrever o maior livro do Mundo Medieval.

A aura de mistério que envolve esta incrível artefato apenas se aprofundou nos últimos séculos, quando o imponente tomo, cujo nome se traduz literalmente como "Livro Gigante", continuou atraindo o interesse e despertando a curiosidade de todos que lançaram os olhos sobre ele. E não é de se admirar que o livro chame tanta atenção.

O Codex Gigas é o maior documento medieval conhecido. As páginas de velino grosso e amarelado foram supostamente confeccionadas com a pele esfolada de 160 burros que deram origem a um livro com notáveis 92 cm de altura, 50 cm de largura e 22 cm de espessura. As 310 páginas que o compõem são encerradas em uma volumosa encadernação com capa de madeira, couro reforçado e detalhes metálicos. O volume é tão pesado que são necessários dois bibliotecários para manuseá-lo.

O  manuscrito teria sido escrito no século XIII por um monge beneditino que vivia num isolado mosteiro em Podlažice na região da Bohêmia, que hoje corresponde a República Tcheca. Não se sabe quem foi seu autor e esse aliás é um dos grandes mistérios que cerca a obra.


Existe uma lenda muito antiga sobre a criação do Codex Giga. Segundo essa lenda, o responsável pelo trabalho foi um monge rebelde que rompeu com o rigoroso códigos de sua ordem. Por suas atitudes ele foi condenado a ser emparedado vivo em uma cela. Para evitar a agonia de morrer de fome e sede, o monge se comprometeu com seus superiores a escrever um tratado que glorificaria o nome da ordem para sempre. Esse maravilhoso livro deveria reunir todo o conhecimento humano em suas páginas e ser uma obra definitiva de erudição e sabedoria. Havia, no entanto, uma condição bastante específica: o monge teria apenas vinte e quatro horas para completar a tarefa.


Imediatamente ele se pôs a compor uma vasta bíblia com uma caligrafia rebuscada e firme. Cada página de velino deveria ser decorada com belíssimas iluminuras feitas com uma tinta vibrante nas cores vermelha, azul, amarela, verde e dourado com um grau de detalhismo surpreendente. O religioso pensou que fazendo um trabalho extraordinário poderia convencer seus colegas a lhe poupar.

Diz a lenda que

Com a ajuda do demônio, o monge conseguiu completar a obra e antes do surgimento dos primeiros raios de sol, o manuscrito estava pronto. Maravilhados com o resultado, e considerando que aquilo so podia ser uma inspiração divina, os monges libertaram seu colega. Imediatamente ele deixou o lugar sem olhar para traz. Algumas lendas afirmam, que quando já estava longe, ouviu-se os gritos aterrorizados dos monges ao de deparar com a ilustração da página 290 onde contemplaram a imagem do diabo.

A lenda é claro, não responde muitas questões sobre o Codex.



A primeira e mais importante pergunta envolve a identidade de quem o escreveu. O que se sabe com certeza é que o modesto monastério de

Alguns estudiosos supõem que o livro poderia ter sido adquirido de outro monastério por um abade interessado em dizer que o livro fora criado em  Podlažice e assim receber algum tipo de benefício da diocese. Mas essa hipótese encontra fortes objeções já que não havia muitos outros monastérios na região e transportar uma obra desse tamanho poderia ser não apenas trabalhoso, mas arriscado dado seu valor. Além disso, como os monges fariam para pagar um volume tão caro?

Supondo-se que o Codex Giga foi criado atrás dos muros de Podlažice é preciso imaginar como o trabalho foi realizado. Produzir uma manuscritos envolve um trabalho grandioso que podia demorar anos para ser concluído - isso excluindo a ajuda providencial do diabo.

Para alguns, a criação do Codex pode ter sido uma empreitada que envolveu todos os monges do monastério o que consumiu vários anos de trabalho concentrado. O objetivo poderia ter sido atrair o interesse da diocese através da obra e receber assim mais fundos. Isso talvez explique porque o monastério não produziu outras obras ao longo de sua existência, já que todos estariam envolvidos no mesmo projeto.

Mas se o livro decorre de um esforço comum deveria constar alguma menção a isso o que não é o caso.

Outra dúvida é que se o livro foi concebido para ganhar o favor das autoridades eclesiásticas, porque acrescentar uma imagem medonha do grande adversário de Deus em uma das páginas? Não poderia essa imagem colocar tudo à perder? Curiosamente ao longo de sua estória, o Codex Giga atraiu muitos interessados em estudar seu conteúdo, mas felizmente a Inquisição jamais cogitou destruir o volume, apesar do conteúdo polêmico de alguns capítulos.

Finalmente, há algo ainda mais curioso à respeito do Codex Gigas e que envolve a autoria do volume. Grafologistas concluíram que todas as 310 páginas foram escritas pela mesma pessoa, ou seja, o trabalho laborioso de copiar cada trecho foi pacientemente realizado por uma única mão. Sabendo que cada página de um livro desta natureza pode demorar muito tempo para ser concluída é surpreendente que o trabalho decorra de um mesmo indivíduo. Os especialistas atestaram que a caligrafia apresenta mudanças perceptíveis ao longo das páginas, apontando para a possibilidade do escriba ter envelhecido e perdido um pouco da firmeza com que copiava as palavras com o passar do tempo. Para os especialistas a obra deve ter demorado algo entre 25-30 anos para ser terminada.

Outra descoberta que reforça a hipótese de um indivíduo solitário é que a tinta utilizada no tratado é basicamente a mesma do início ao fim. Nessa época, os próprios monges produziam a tinta que utilizavam em seu ofício e cada um tinha uma preferência. Estudiosos foram capazes de descobrir o responsável por um mesmo trabalho examinando a tinta usada por ele, quase como se cada monge tivesse uma assinatura própria de acordo com os ingredientes usados na mistura. No caso do Codex Gigas, a tinta foi produzida a base de ninhos de inseto triturados com betume, uma fórmula bastante específica e incomum.


As primeiras menções ao Codex Gigas datam de meados do século XIII, quando o monastério de Podlažice enfrentava sérias dificuldades financeiras. Para levantar dinheiro e continuar existindo, em 1477 os monges negociaram a venda do manuscrito para outro monastério mais rico próximo da capital, Praga. Infelizmente, Podlažice acabaria sendo destruído por doença e peste que varreu a Europa Oriental nessa mesma época. Dizem que nenhum dos monges do local sobreviveu a terrível epidemia. Logo que o documento foi transportado e acomodado na biblioteca da ordem que o adquiriu, esta também começou a perder recursos e enfrentar dificuldades. Esses dois acontecimentos juntos acrescentaram mais um detalhe a lenda do Codex Gigas, uma suposta maldição que recaía sobre todos que adquiriam o livro.

Incapaz de manter o tomo - e segundo alguns temendo as estórias que o cercavam, o monastério acabou doando o volume em 1594 ao Imperador Rudolfo II do Sacro Império Romano. Acredita-se que o erudito governante tinha um profundo interesse em alquimia e ocultismo e que desejava o livro desde que ouvira boatos sobre sua existência. Um cronista da época relatou que ao se deparar com a imagem do demônio, Rudolfo II sorriu enigmaticamente e comentou que o livro doravante seria seu tesouro mais valioso. Mas o livro não traria bons frutos ao imperador. Poucos anos depois seu comportamento sofreu uma drástica transformação, ele se tornou errático e paranoico vendo conspirações em todo canto. Declarado incapaz de governar acabou banido pela sua própria família.

O livro permaneceu na Biblioteca Real de Praga até que no século XVII, em meio a Guerra dos Trinta Anos a cidade foi invadida por tropas suecas. Em meio ao caos e destruição que se seguiu o acervo real foi saqueado e entre os itens removidos estava o Codex Gigas. O tomo foi levado para Estocolmo onde permaneceu desde então na Biblioteca Nacional daquele país.

Ao longo dos anos, o manuscrito recebeu uma enorme variedade de nomes que fazem alusão ao seu tamanho e ao famoso retrato do Diabo. Além da Bíblia do Diabo e Codex Gigas foi também chamado Codex Giganteus (Livro Gigantesco), Gigas Librorum (O Livro Grandioso), Fans Bibel (Bíblia do Demônio), Hin Hales Bibel ("Old Nick Bíblia") e Svartboken (o Livro Negro).


O Codex Gigas é a única bíblia medieval conhecida onde existe uma imagem demoníaca, ao menos um demônio que não está sendo submetido pelo Anjo Gabriel. A figura é retratada semi-vestida com a tradicional pele de arminho real, uma óbvia conotação ao papel do diabo como monarca do inferno. Ele é  metade homem, metade animal, com garras, patas de falcão, e uma enorme língua vermelha. Os chifres são longos, brotando na cabeça bulbosa e desproporcional. O desenho mostra a figura diante de uma parede murada sem seus súditos ou escravos infernais. Muitos supõem que a imagem pode ser uma alusão a condição de aprisionamento do demônio no inferno e a impossibilidade dele ascender.

Qualquer pessoa folheando o tomo acaba sendo eventualmente atraído para o enorme retrato do diabo na página 290, o que criou a impressão de que este é um dos pontos focais do livro. Ao longo da história, muitas pessoas também chamaram a atenção para o fato da página ser mais escura em comparação a todas as demais do livro. E que esta seria uma manifestação sobrenatural ocasionada pela representação diabólica ali retratada. Mas a explicação mais aceitável para esse fenômeno reside no fato de que a luz incidindo sobre a página em especial acabou por escurecer o velino.


O conteúdo do Codex Gigas inclui uma versão da Vulgata Latina, a tradução da Bíblia em grego para o idioma latim realizada no século IV. Além das passagens bíblicas completas, o Codex possui cinco grandes textos de cunho histórico e científico. Dois trabalhos do filósofo Flavius Josephus que viveu no século primeiro, as antologias Antiquities e Guerras Judáicas. Além disso, ele também apresenta uma versão da  Etymologiae, uma enciclopédia escrita por Isidoro de Sevilha e o tratado histórico "Chronica Boemorum" (Crônicas da Boémia) que relata a formação política daquela região. Ainda mais interessante é a existência de uma miscelânea de textos exclusivos versando sobre medicina, uso de ervas, tratamentos para doenças perigosas, realização de magias, rituais de purificação, penitências, exorcismos e outras noções práticas para eruditos.

Como não poderia deixar de ser, um livro conhecido como "A Bíblia do Diabo" naturalmente se torna uma espécie de para-raios de superstições e narrativas bizarras. Uma das mais conhecidas lendas diz que quando o livro é deixado fechado por muito tempo, acaba se abrindo por conta própria, sempre na mesma página... a do retrato do diabo.

Outra lenda ligada ao livro diz que alguns trechos escondem encantamentos diabólicos e rituais de magia negra que podem ser decifrados a partir do estudo de alguns trechos. Ler o livro em algumas noites pré-determinadas também seria nocivo, pois nessas datas específicas alguns trechos mudavam e incluíam louvores satânicos. Finalmente, a imagem diabólica teria a propriedade de permitir que o leitor se comunicasse com o próprio demônio ao encarar seus olhos por tempo suficiente e pedir uma audiência com ele.  
Passados tantos anos, a "Bíblia do Diabo" ainda mantém a sua aura mística. Prova disso é o sucesso de uma exposição organizada em 2007 que trouxe o Codex Gigas de volta a Praga, 357 anos depois dele ter sido removido.

Na ocasião, filas de curiosos se formaram na Biblioteca Nacional, todos ansiosos para ter um vislumbre do misterioso livro. E com certeza, muitos esperavam pela oportunidade de olhar nos olhos da misteriosa imagem e saber se as lendas podem ser verdadeiras...

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